*Por Luciano Aguiar
Ramires,
desde menino, foi educado na rinha, e o galo de briga era seu maior fascínio.
Convivia de forma misteriosa com seus vizinhos, mas em segredo carregava uma
mágoa, remoía pensamentos ofensivos a respeito do seu Mané Galinha, como os
fregueses chamavam no balcão da Avícola Capão, pela sua estima ao galo de
capoeira, popularmente conhecido como terranço.
Ramires,
de madrugada, muito antes do sol nascer, lá no fundo do quintal, começava os
preparativos para cuidar do Serenata, um galo campeão que obteve sucessivas
vitórias, quase todas por fatal nocaute (espora na nuca do adversário, que caí
aos botes para traz, tremendo até findar).
Numa
coincidência sem limites, àquela hora, Mané Galinha já passeava com seu capão,
um galo vistoso, caboclo avermelhado nas penas do pescoço e do capote traseiro,
disparando o canto afinado dos terranços. Era um trauma, para Ramires, que
tinha o Serenata, um espartano, também caboclo, de paletó justo e tosado, para
as defesas durante o combate.
Aos
sábados, dia de rinha, Ramires não trocava uma só palavra, desde véspera, com
nenhuma alma viva, a não ser o Serenata. Ramires sentia-se como um técnico,
semtoalha, confiante no gigante que tinha no quintal. Numa dessas emboscada da
vida, Ramires resolveu convidar Mané Galinha para acompanhá-lo na rinha. Ele
tinha a esperança de converte o vizinho em galista e remover o canto do capão,
que, segundo Ramires, vinha influenciando o canto de Serenata, como no grego do
extravagante sob o curió.
Foi
uma véspera de agonia, um sábado que o sol nasceu sem cor e sombrio, como no
dia das bruxas. Ramires chegou cedinho ao quintal, a insônia do convite à Mané
Galinha deu-lhe a conhecer o medo e a possibilidade da derrota de Serenata, um
campeão nato de tantas vitórias. Mané no quintal, com a vassoura e o Capão
pousado na palma da mão, acenou para Ramires e confirmou a moda antiga dos
romanos, com o polegar invertido, para a degola. Que triste interrogação
engoliu Ramires, O Capão ou Serenata?
Quem permaneceria no mundo? E assim, o
dia raiou e os dois saíram a pé, para o ponto de ônibus, com Serenata numa
sacola-camisa, confeccionada de tecido aveludado.
Os
dois, em absoluto silêncio, lado a lado, separados pelo campeão e o ruído do
ônibus. Ao chegarem à porta da rinha, o letreiro à esquerda, em caixa alta,
chamou a atenção de Mané Galinha, “Galo apanhado, não anda na mesma rinha”. De
súbito Ramires foi ovacionado, quando cruzou a soleira do Panteon, e todos
gritaram: chegou o campeão Serenata.
O
orgulho foi quebrado, quando do fundo da rinha, por trás do tambor principal,
um gaito chamou à atenção de todos aos berros: Tubarão, tá aí seu Serenata.
Vamos ver quem cospe primeiro, seu Ramires? Ramires já respondeu babado, ao
ponto de Mané Galinha cuspir por ele, dando início as apostas, pesagens e a verificação
das armas.
Considerado
o duelo do ano, Serenata, o fatal do Bairro Novo e Tubarão, o demolidor da
Pedra Velha.
Ramires,
já não era Ramires, assim como os outros, pensou Mané Galinhas, pelo jeito
armado de falarem entre si. Os galista pareciam penosos de verdade, nos bate
bicos, próprio de ringue que corre o sangue. O juiz, no centro do tambor,
verificou as esporas, bicos de pratas e o acerto das apostas, e deu início a
largada mais emocionante que Mané Galinha presenciou na vida, mesmo sendo criado
na porta do Matadouro.
Ventilador
de teto a moda indiana, ligado como de costume, para refresca o ambiente,
porque as aves são animais de sangue quente, tratados à base de cebola crua,
como forma de evitar o afronto e cansaço prematuro durante o combate.
O
silêncio, algo incomum numa rinha, fez voga na solta de Serenata e Tubarão, com
arrepiar de penas, bicadas,
soltas
e domínio de pescoço. Nos primeiros minutos parecia que o duelo seria difícil,
e Serenata poderia sofrer sua primeira e última derrota para Tubarão, na
presença de Mané Galinha, naquela rinha, como estava escrito à esquerda de quem
entra.
O
tempo foi avançando, Serenata dominou Tubarão, levando-o a passa em baixo,
posição fatal num duelo de esporas, justamente contra o Serenata, um verdadeiro
samurai de penas. Nos minutos subsequente, um grito ensurdecedor apagou as
esperanças da torcida de Tubarão, levando ao pódio Serenata, que fez Tubarão
revirar a cabeça para trás e pular aos avessos até morrer, ali mesmo no tambor.
Feito
um coito de galinheiro, Ramires e Mané se abraçaram e pularam juntos dentro do
tambor, numa euforia inexplicável. Ramires levantou Serenata, e aos berros,
além das palhetas, esbravejou: campeão! Em seguida, viu um cabeça acompanhada
de um rastro de sangue, como a passagem de um avião a jato, cena explicita da
degola do serenata pelo ventilador. Ramires caiu de joelhos aos pés de Mané
Galinha, suplicando desculpas pela trama e gaguejando: não mate o seu Capão!
Num
duelo, a vitória pode ser a derrota das intenções...Segue nós.
*Luciano Aguiar é Colunista do Blog Ferreira Delmiro