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Reforma política ou armadilha?

A "operação estanca-sangria" campeia solta em Brasília. Enquanto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dava um jeito de adiar o julgamento da chapa DIlma-Temer, o deputado Vicente Cândido (PT-SP) apresentou ontem na Comissão Especial da Câmara o relatório em que lança as bases de seu anteprojeto para a reforma política.

Numa iniciativa concorrente, o deputado Betinho Gomes (PSDB-PE) deu um parecer favorável, na Comissão de Constituição e Justiça, para que seja acatado na íntegra o texto da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da reforma política, aprovado em novembro passado pelo Senado.

As duas propostas são quase antagônicas. Onde a PEC recomendada por Gomes defende alterações pontuais há muito necessárias, que aperfeiçoariam o sistema eleitoral brasileiro, a proposta de Cândido, antecipada pelo G1, é tão ruim que, se seguir adiante como está, nossa política manterá os principais vícios que originam a corrupção.

Verdade que o relatório ainda é uma fase preliminar. Dele resultarão três projetos de lei e uma outra PEC, que o próprio Cândido reconhece não contarem, a esta altura, com o apoio da maioria das bancadas. Mas, ao contrário do TSE, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tem pressa em aprovar uma reforma que regule o financiamento das campanhas já nas eleições de 2018.

O relatório de Cândido padece do mesmo defeito que fez tantas reformas políticas naufragarem: tem um escopo ambicioso. Propõe mudanças na forma de voto, nas regras da apuração, nos mandatos, nos cargos eletivos e até na data das eleições.

O objetivo implícito não é resolver a crise de representatividade que acomete a democracia brasileira –mas garantir o dinheiro nas campanhas eleitorais e manter na mão da classe política – e não do eleitor – a escolha do nome dos representantes eleitos, lhes garantindo a prerrogativa de foro nos tribunais superiores. Eis as principais mudanças recomendadas e algumas consequências:

1. Voto em lista fechada – Trata-se da maior aberração da proposta. Nas eleições legislativas, o eleitor votaria apenas no partido, não no nome do parlamentar. Apurado o tamanho da bancada de cada legenda, proporcional aos votos recebidos em cada estado, os eleitos seriam determinados de acordo com uma lista ordenada pelo próprio partido. A ideia é considerada necessária para garantir o financiamento da campanha com dinheiro público, pois seria inviável controlar a distribuição de recursos a todos os candidatos. A consequência imediata é manter nas mãos da lideranças partidárias a decisão sobre quem permaneceria no Legislativo e teria prerrogativa de foro nos tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) – onde a Operação Lava Jato e os processos contra corrupção caminham notadamente mais devagar.

2. Financiamento misto de campanha – Para custear as eleições, a proposta prevê um novo fundo partidário, com recursos públicos e doações de pessoas físicas aos partidos, limitadas a seis salários mínimos nos dois turnos. É duvidoso que a dimensão desse fundo, inicialmente estimado em R$ 2 bilhões, seja suficiente para todas as campanhas. Não há mecanismo para evitar que empresas ou doadores privados destinem recursos por fora – na última hora, Cândido excluiu do relatório a criação do crime de caixa dois, sob o pretexto de que ele já consta do pacote anti-corrupção aprovado pela Câmara no ano passado.

3. Duração dos mandatos e fim da reeleição –  Os eleitos para presidente e governador em 2018 teriam mandato de cinco anos, e os prefeitos eleitos em 2020 teriam mandato de três. A partir daí, a cada cinco anos haveria eleições para os cargos Executivos. Os mandatos legislativos continuariam a funcionar como hoje (quatro anos para Câmara e assembleias municipais e estaduais, oito para o Senado). Haveria, portanto, descasamento entre as eleições para o Legislativo e o Executivo. Na teoria, a ideia da proposta é estabelecer momentos em que o eleitor cobre o Executivo na urna (ao conferir-lhe ou negar-lhe o apoio no Legislativo) e, com o fim da reeleição, evitar que a corrida eleitoral contamine o fim do governo. Na prática, seria uma confusão, com eleições a cada um, dois, ou três anos, até que em 2038 haveria eleições para todos os cargos. Claro que, mesmo sem reeleição, o último ano do mandato continuaria influenciado pelas urnas. É o tipo da proposta que mais confunde do que resolve.

4. Fim do cargo de vice – A proposta extingue, sem justificativa nem alternativa explícita, os mais de 6 mil cargos de vice, com o objetivo de economizar recursos, diminuir o espaço de barganha política e aumentar o poder do Legislativo na linha de sucessão. É sempre uma boa ideia acabar com cargos públicos inúteis – ou, dir-se-ia, para os mais afeitos à mesóclise, decorativos. O efeito dessa medida varia entre o irrelevante e inócuo.

5. Coligações nas eleições proporcionais – Na única medida essencial do relatório, que praticamente reproduz a PEC aprovada pelo Senado, Cândido propõe o fim das coligações nas eleições proporcionais. Pela proposta, os partidos podem se aliar em “federações” para obter votos nas urnas – mas devem manter a aliança durante todo o exercício do mandato. Trata-se de uma mudança bem-vinda e mais que necessária. As coligações nas eleições proporcionais são o maior gerador de distorções na democracia brasileira. Dão espaço a legendas de aluguel sustentadas por puxadores de voto e permitem que o voto num candidato comunista eleja um liberal e vice-versa.

Além do crime de caixa dois, ficou fora da proposta de Cândido a outra medida essencial, que consta da PEC do Senado: o estabelecimento de uma cláusula de barreira para desestimular a criação de legendas de aluguel. Com 28 agremiações representadas no Parlamento, o Brasil é o país com o sistema partidário mais fragmentado do mundo. A PEC do Senado prevê que terão direito a assento na Câmara apenas partidos que obtiverem 2% dos votos em 14 estados e 3% dos votos totais – patamar que seria de 2% em 2018.

É evidente que o sistema eleitoral brasileiro precisa ser reformado. Mas a ambição não pode torne as mudanças inviáveis. Como afirma o cientista político Jairo Nicolau em seu livro mais recente, Representantes de quem? (tema de minha coluna na revista Época em fevereiro), “o resultado mais negativo desse interminável debate sobre a reforma política no Brasil é o aumento da expectativa em relação a seus resultados”.

Melhor a Câmara ater-se às mudanças pontuais já aprovadas no Senado que tentar implantar as propostas abrangentes de Cândido. Minimalista, a PEC que recebeu o aval de Gomes mexe apenas nos dois pontos essenciais: clásula de barreira e fim das coligações nas eleições proporcionais. Querer mudar tudo é o método mais eficaz para não mudar nada – ou para mudar apenas aquilo que interessa a quem quer salvar os corruptos da Lava Jato.


G1