José Vieira da Cruz*
Vivemos um tempo de grandes desafios. Apesar dos
avanços tecnológicos e da globalização da economia a fragilidade da vida humana
tem sido colocada a prova. Por um lado, não há fronteira, classe, gênero,
religião, ideologia ou raça imune a pandemia que se propaga sob o ritmo de uma
espiral de crescimento exponencial; por outro lado, os efeitos sanitários e
econômicos dela atingem grupos socialmente mais vulneráveis. Parafraseando o
pesquisador David Harvey, em trabalho recentemente publicado, assim como existem
terremotos sociais, há pandemias sociais, de gênero e de raça.
A Covid-19, enfermidade provocada pelo Coronavírus,
além de resistente está adaptada e demonstra rápida velocidade de contágio: em
muitos casos ela não mata o hospedeiro, mas se utiliza dele para contaminar
outras pessoas; em outros, em fração expressiva, contagia, impõe enfermidades e
agrava sintomas respiratórios, cardiovasculares, imunológicos, da diabetes, dentre
outras doenças preexistentes. O resultado disso tem sido, em vários países, o
rápido estrangulamento da capacidade de atendimento de seus sistemas de saúde e,
consequentemente, o aumento crescente do número de mortes associados a
pandemia.
Essa combinação de fatores – velocidade de
contágio, grande número de enfermos que precisam de cuidados intensivos por um
relativo período de tempo, duas, três ou mais semanas e baixa capacidade de
prestar atendimento – sinaliza a limitação dos recursos disponíveis para
estabelecimento de protocolos de tratamento e das possibilidades de postergar a
vida humana, impondo a familiares, profissionais da saúde, autoridades
responsáveis e à população mundial a tragédia de assistir de modo impotente a
morte de milhares de pessoas, a exemplo do que está acontecendo na Espanha e,
em particular, na Itália.
Desta forma, em poucos meses, o referido vírus vem mostrando
a importância e necessidade de os governos investirem no desenvolvimento educacional
e técnico-científico para que não seja transformado em pó os avanços acumulados
pela humanidade na área da saúde no decurso de séculos. E, em termos
contraditórios, o mesmo vírus se aproveita dos sistemas de circulação de
pessoas e de mercadorias, através de aeroportos, portos, estradas, hotéis,
escolas, universidades, restaurantes, turismo, eventos e atividades de compra e
de lazer, para potencializar sua transmissão e propagação de modo global.
Dentro deste contorno, adaptado ao mundo
globalizado e a sua espiral infinita de consumo, onde pessoas e mercadorias
circulam rapidamente de uma cidade, país e continente a outro, a pandemia do
Covid-19 tem multiplicado o número de pacientes que precisa de cuidados
intensivos. Por esta razão, apesar dos recursos financeiros e dos avanços
científicos e tecnológicos, faltam leitos, equipamentos, profissionais e
insumos suficientes para atender a demanda dos que precisam de cuidados
intensivos. Face a essa dura e desumana realidade, os sistemas de saúde não
demoram a colapsar, a exemplo do que está ocorrendo na Itália, na Espanha e em
outros países.
Ao passo que o neoliberalismo pautado na
especulação financeira, modelo econômico mundial vigente na atualidade, aprofundasse
em uma crise real sem precedentes. Os efeitos desta que já é considerada a maior
crise de nossa geração expõem também os valores e as prioridades de uma
sociedade consumista, centrada em ganhos financeiros e que não priorizou
políticas de bem-estar social (sanitárias, preventivas, educacionais,
previdenciárias, ambientais e de seguridade), em particular, nas últimas décadas.
Desse modo, emblematicamente, a epidemia que surgiu na cidade de Wuhan,
província de Hubei, na República Popular da China, no continente asiático, em
dezembro de 2019, chega à condição de pandemia no primeiro trimestre de 2020,
atingindo também a América, a Europa, a África e a Oceania. Neste contexto, a
Itália e a Espanha, acompanhadas de outros países, como os Estados Unidos,
França e Reino Unido, tornaram-se os novos epicentros da pandemia com crescente
número de mortos.
É, diante desta crise sanitária, econômica e
humanitária, já profundamente presente no Brasil e na Amárica Latina, que
registramos uma cena de arrepiar, um momento histórico e de fortes significados
até para os mais descrentes dos mortais desta geração. Refiro-me à cerimônia,
transmitida para todo o mundo, ocorrida no dia 27/03/2020, última sexta-feira,
na cidade do Vaticano, na praça da basílica de São Pedro, celebrada pelo Papa
Francisco, que proferiu a Bênção “Urbi et Orbi”, expressão em latim que
significa uma mensagem de fé “à cidade de Roma e ao mundo”.
Os papas, tradicionalmente, proferem a referida bênção
por ocasião das celebrações do Natal e da Páscoa para comemorar momentos
bíblicos referentes ao nascimento do Cristo e a libertação do povo Judeu do
cativeiro do Egito. Nestas ocasiões, a praça da basílica de São Pedro costuma
ter um público presente de milhares de pessoas. Além disso, a cerimônia, plena
de simbolismo, é assistida através dos meios de comunicação por milhões de
pessoas ao redor do mundo.
Desta feita, a Bênção “Urbi et Orbi” proferia uma
mensagem de vida, esperança e conforto para milhões em todo mundo ao tempo que
milhares de pessoas perdem a vida por conta da pandemia, inclusive no Vaticano
e na Itália. A cena é única, assistir ao Papa Francisco atravessar sozinho a
praça, em um dia de chuva, e com semblante sereno, cansado, com a expressão de
dor e o duplo sentimento de perda e de esperança na vida humana. A imagem de um
mundo que chora seus mortos e reza por uma cura foi impactante. E, por outro
lado, as gotas de água da chuva lembravam as lágrimas que rolam na face com a
dor das perdas.
Cada gesto da cerimônia ecoava significados
profundos para os milhões que o acompanhavam pelos meios de comunicação e pelas
redes sociais. Talvez um público muito maior do que em outras ocasiões. Neste
instante da história, em que milhões de pessoas se reservam ao distanciamento
social, por conta dos efeitos de uma pandemia sem precedentes, a celebração e
os gestos de Francisco calaram fundo na alma e expressaram a necessidade de cada
ser humano repensar a vida, os destinos da humanidade e do planeta.
Francisco não estava só! Apesar de atravessar
sozinho, em dia chuvoso, a praça da basílica de São Pedro para celebrar a “Urbi
et Orbi” e beijar os pés do crucifixo – que a quase 500 anos, segundo a
tradição católica, salvou milhões da Grande Peste de 1522 –, ele carregava em
seus ombros, em seu semblante, a esperança da humanidade de que estamos todos
juntos diante dos desafios da vida e da morte.
Independente da crença ou do ceticismo de cada um,
penso que não haveria lugar e momento mais simbólico para essa reflexão. A Roma
da Antiguidade. O Vaticano da Cidade Eterna. A praça da basílica de São Pedro.
O Papa Francisco. O homem e religioso Jorge Mario Bergogli. A Bênção Urbi et
Orbi. A Chuva... ah... a Chuva! Uma cena para História. Uma cena forte com
significados que transcendem o cristianismo: o arrepio diante dos mistérios da
vida e da morte e a esperança na humanidade.
Cuidem-se! Cuidem dos seus e cuidem do próximo!
Estamos todos juntos em prol da vida humana neste planeta água chamado Terra.
* Professor da UFAL, Doutor em História pela UFBA, membro
do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e da Academia Alagoana
de Educação (ACALE).
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