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Mulheres Mil forma 1ª turma de travestis e mulheres transexuais da Rede Federal

Sete meses de estudos e dedicação. A recompensa está prestes a chegar: o certificado emitido por uma instituição federal de ensino. As concluintes do curso têm um motivo a mais para comemorar. Elas integram a primeira turma composta por travestis e mulheres transexuais da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica que o Mulheres Mil, iniciativa de capacitação profissional feminina vinculada ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), vai formar em Alagoas, neste mês de maio.

A chamada "turma da diversidade" reuniu também mulheres cis lésbicas. Todas receberam capacitação na área de pintura de obras imobiliárias, com a parceria da ONG Pró-Vida, entidade envolvida com a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a promoção da cidadania e dos direitos humanos para a população LGBT.

Executado pelo Instituto Federal de Alagoas - Ifal, o curso ofertado na capital alagoana possui carga horária de 200 horas e as alunas recebem ajuda de custo por cada dia frequentado. A ação buscou proporcionar condições às travestis e mulheres transexuais de ingressar no mercado de trabalho. "O objetivo é tirar esse público das ruas e dar garantias para que o estereótipo de 'profissionais do sexo' seja aos poucos esquecido pela sociedade", afirma Fabíola Silva, aluna do curso e diretora-geral da Pró-Vida.

De acordo com a gestora institucional do Mulheres Mil Ifal, Luiza Jaborandy, trata-se de uma experiência pioneira em todo o país. "Não há na Rede Federal outra formação profissional destinada especificamente a esse público. Inclusive adaptamos alguns componentes curriculares nesse sentido, porque é nossa missão trabalhar pela inclusão social e afirmação de direitos", destaca a dirigente. 

As mudanças na vida das beneficiadas já começam a ser notadas antes mesmo do término da capacitação. Algumas se matricularam no ensino regular e voltaram a estudar, outras planejam abrir o próprio negócio. São sonhos resgatados a partir da elevação da autoestima, um dos pilares do programa. 

Novas perspectivas

Aos 32 anos, Bianca de Lima se diz animada com a possibilidade de conseguir um emprego após a conclusão do curso. "A gente que só tem a visão de rua, a gente pode ter um espaço no mundo do trabalho. Travesti não é só cabeleireira, travesti não é sexo, travesti também é trabalho, é família, é organização", ressalta.

Participante de movimentos populares, a estudante luta pelo direito ao uso do nome social nos mais diversos espaços. Ela reconhece a resistência e os desafios que população LGBT enfrenta para estudar, mas garante que políticas públicas de incentivo e acolhimento fazem toda a diferença na hora de superar os obstáculos. "Tem gente que fica no pensamento que nós somos homens. Não sei o que ganha com isso. Nossa existência não é para afrontar ninguém. O sonho de uma travesti é só que a família lhe abrace. É ter o seu espaço, é ser respeitada na sua comunidade", acrescenta, sobre as vivências anteriores com bullying em sala de aula.

Para Bianca, a experiência de estudar em uma instituição de ensino reconhecida abre novas perspectivas. "É um luxo. Nós somos as primeiras travestis do Brasil a fazer esse curso de pintora. Quero continuar estudando. Cada dia se aprende mais".

Oportunidade de superação

Isadora Alves, uma das futuras pintoras de obras imobiliárias formadas pelo Mulheres Mil Ifal, também vê no curso a possibilidade de ser vista "com outros olhos". Vítima de preconceito desde a infância, ela saiu de casa aos 14 anos, cansada da vida sofrida e do histórico de violência nas ruas, onde desde cedo era obrigada a pedir esmolas para ajudar no sustento da família.

Hoje, aos 41 anos de idade, a estudante mantém a esperança em dias melhores. "Ah, eu sonho muito. Sonho em conquistar minhas coisas, arrumar minha casa , ajudar minha mãe. Sonho em adotar uma criança, formar uma família", enumera Isadora. Entre os seus desejos, está o de que outras mulheres tenham acesso ao cursos profissionalizantes do governo federal. "Eu queria que não acabasse, chegasse mais cursos. A gente conhece pessoas novas, se entrosa com quem tem mais experiência. É um incentivo muito grande", diz.

Questionada acerca de quais os maiores impedimentos para sua realização pessoal e profissional, Isadora fala dos olhares atravessados, da falta de aceitação da sua condição de gênero. "Queria que as pessoas me olhassem como uma mulher, como a pessoa que eu sou, porque eu não pedi para nascer assim. O que vale é a minha identidade. Eu me considero uma mulher mil, guerreira, dona do meu destino", descreve a aluna, atualmente pintora voluntária, com outras colegas de curso, da Creche Municipal José Maria de Melo, localizada na parte alta de Maceió.

Alternativa viável

Longe da sala de aula há mais de 25 anos, Fabíola Silva retornou aos bancos escolares por meio do Mulheres Mil e agora  sonha longe, quer concluir o ensino médio e tentar vestibular para História. "Em uma das atividades do programa, visitamos a Universidade Federal de Alagoas, conhecemos a biblioteca. Foi aí que me deu aquela vontade de fazer faculdade. Porque eu tinha vergonha, medo, por já estar com 47 anos. Mas agora estou arrumando minha vida para isso. Não vou mais desistir de mim", adianta a discente.

Com uma trajetória de luta no movimento de travestis de Alagoas, a militante sofreu um atentado quatro anos atrás. Foi atingida por um tiro quando se dirigia a uma lanchonete no bairro Benedito Bentes. "Eu ia passando para comprar um sanduíche e atiraram em mim. Do nada. Até hoje eu me pergunto se alguém me confundiu com alguma pessoa, porque eu vinha andando, ouvi o disparo, olhei para trás e senti que bateu aqui no meu rosto. Por sorte, foi só o estilhaço e não tive grandes consequências", conta, ao lembrar os números alarmantes de casos de violência contra transexuais e travestis no Brasil. Para ela, é inadmissível odiar pessoas por serem travestis ou transexuais. "Cada um tem a sua identidade. Essa é a minha bandeira de luta. A gente tem que ser livre, minha gente!", defende. 

Fabíola tem formação básica de cabeleireira. Começou como serviços gerais de um salão de beleza e acabou abrindo o próprio negócio. Agora pretende expandi-lo e aliar à nova profissão aprendida no Ifal. "Estou refazendo o meu salão e ele vai estar com a parede pintada por mim. Os clientes vão ficar perguntando 'quem pintou essa parede?' e vou responder 'fui eu, com o curso do Mulheres Mil'", comenta, com um tom de contentamento. 

Para a estudante,  a possibilidade de trabalho autônomo é o destaque da formação em pintura de obras. Em tempos de crise, as empresas costumam contratar menos e atuar por conta própria parece ser uma alternativa viável de geração de renda.

No mundo do trabalho, o medo de sofrer preconceito por parte dos empregadores também assombra. Essa situação, aliás, ela já conhece bem. Em um momento de dificuldade, precisou vender o salão de beleza que possuía e viu as portas do mercado de trabalho formal se fecharem. "Quando a gente assume nossa identidade de gênero, as oportunidades desaparecem. No meu caso, fui trabalhar na rua, fui prostituta. Passei dez anos na Avenida, depois segui para a Europa. Fiquei sete anos em Portugal e seis meses na Espanha. Isso é uma lacuna na minha vida. E olhe que eu não fui expulsa de casa como muitos já foram; mesmo assim, precisei disso para me virar", relata. 

O que move Fabíola agora, depois de tantos percalços? A vontade de ir em frente. "Nós somos as primeiras meninas trans no Brasil a estar nesse curso de qualificação. Isso me motivou. Porque tanto tempo longe da sala de aula eu não sabia como ia ser a volta. Mas fui bem acolhida. Já está sendo um preparatório para a universidade, para me adaptar", emenda a formanda. 

Resgate da autoestima

Acreditar no próprio potencial tem sido o exercício diário também da concluinte Priscila Oliveira. Na opinião dela, manter a autoestima elevada ajuda a alimentar os sonhos. Além do curso de pintora de obras, a jovem de 30 anos atualmente está matriculada no ensino fundamental e planeja concluir essa etapa no próximo ano. 

"Antes eu estava sem fazer nada. Agora estou me qualificando para trabalhar e ser independente. Aqui é só coisa positiva. As amizades que fiz, principalmente. A gente tem os problemas em casa e quando chega no curso, esquece o que se passa, parece uma terapia. Agora falta só um emprego, a oportunidade para me inserir no mercado de trabalho", aponta a estudante.

Outra aluna que se diz apaixonada pelo ofício que aprendeu nos últimos sete meses é a Drika Guedes. Do universo artístico, onde já trabalhou como drag queen e maquiadora, ela trouxe as referências para a nova área de atuação. "Eu não quero me deter só à pintura de fachada, pintura de cor única. Quero desenvolver desenhos de fundo, painéis de cenário de espetáculo teatral, aplicar texturas", adianta a profissional.

A história de vida dela tem algumas semelhanças com as das colegas de curso. Quando entendeu sua orientação sexual e identidade de gênero, saiu em busca da independência financeira. Começou a trabalhar aos 14 anos e conseguiu concluir o ensino médio. O apoio da família, segundo ela, foi fundamental. "Nunca tive nenhum tipo de desavença em casa. Minha família é evangélica, meu pai é pastor. Mas ele não tem nenhum preconceito. O meu jeito de ser feminino é uma coisa bem clara, não tem nem o que esconder. E ele acolhe a mim e meus amigos, seja quem for", revela, orgulhosa.

Drika acredita na influência das relações interpessoais para mudar a realidade de discriminação. É assim, no contato com o outro, na aproximação entre os indivíduos que se constrói a empatia, em sua opinião. "As pessoas têm uma visão da gente, têm um preconceito sem ao menos nos conhecer. Quando nos conhecem, veem que nós somos iguais". E com muita coisa boa a oferecer, conforme acrescenta: "eu mesma, desde pequena, minha mãe me ensinou a ser nota mil, não no sentido da perfeição, mas de ser gentil, educada, trabalhadora, saber respeitar o próximo".

Para a iniciativa da criação da primeira turma com mulheres trans em Alagoas, ela é só elogios. "Vocês abriram portas para um público que é minoria. Não se vê muitas travestis, pelo dia, fazendo curso, na faculdade, no colégio. É muito triste você ver um ser humano excluído simplesmente por ser do jeito que é, mas é o que acontece. Sem contar que a maioria não teria nem condição de pagar um curso desses".

Faltando poucas semanas para a formatura da turma da diversidade, tem sobrado tempo para planejar o futuro. Na lista da estudante, está o desejo de virar uma empreendedora, contratar funcionários para ampliar seu negócio e, quem sabe, a graduação em Publicidade e Propaganda. "Eu sou sonhadora. Se a gente não sonhar, não conquista nada nessa vida. Por enquanto, o foco é ganhar mais dinheiro, porque não tá fácil para ninguém", encerra, aos risos.  

Sobre o programa

O Mulheres Mil faz parte do Plano Brasil sem Miséria, do governo federal, e atua no âmbito da inclusão educacional e produtiva de mulheres em situação de vulnerabilidade social. Além do módulo profissional, o programa contempla práticas de elevação da autoestima feminina e abordagem de temas transversais como saúde e direitos da mulher, cidadania, inclusão digital, empreendedorismo, segurança alimentar e responsabilidade ambiental.  


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